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Foto do escritorFelipe Nadai

Um McMindfulness Feliz, por favor.


O - não tão novo - produto a ser consumido, "mindfulness", tornou-se um mantra onipresente entoado e repetido à exaustão em retiros corporativos, aplicativos de atenção, redes sociais, influencers de meditação, revistas e Wellness, livros de autoajuda e, infelizmente, por colegas psicólogos que leem até a segunda página sobre budismo.


Citado no ocidente dentro de um programa de redução de estresse baseado em mindfulness (MBSR Training®)  em 1979 por Jon Kabat-Zinn na Universidade de Massachusetts, o MBSR® combina práticas de meditação budista, explorando um dos seus estados mentais - com traduções por vezes muito distintas e não consensuais - em elementos de yoga, promovendo um caminho para consciência corporal. A prática de menos de meio século angaria hoje adeptos ao redor do mundo sendo propulsionado em formato de recurso terapêutico principalmente pelas teorias psicológicas de quarta onda - como a TCC. O conhecimento, entretanto, sobre suas origens parece estar num passado já inteiramente mais distante do que essas suas poucas décadas de existência. Ao longo das próximas linhas navegaremos dentro das correlações que pude observar nessa mais de uma década estudando tradições asiáticas milenares mescladas ao pouco conhecimento psicanalítico que adquiri.


No universo do budismo, o termo “mindfulness” em inglês não tem uma tradução padrão. Existem várias maneiras de expressar esse conceito, mas originalmente vem da palavra em sânscrito "sati" que pode ser lido como “lembrar cuidadoso”, o próprio “lembrar”, “inspeção”, “presença”, “presença mental”, “consciência secundária”, “consciência”, “atenção”, “atenção concentrada”, “autorrelembrar” e “retenção”. As traduções que utilizam “atenção” não são muito boas porque “atenção” é outro fator mental, o que pode gerar confusão. Variações como “lembrar” e “presença” são mais precisas, pois a etimologia da palavra em páli está ligada a uma memória de curta duração, que significaria algo como “não perder o fio da meada”. Já “consciência secundária” é uma tradução interessante, pois sugere que “mindfulnessé uma forma de atenção sobre a própria atenção. As melhores traduções poderiam ser “inspeção contínua” ou “presença mental”. Sati seria um planejamento amplo das próprias ideias e suas correlações com o ambiente, uma suposta dimensão de "meta-atenção". Em termos práticos, é lembrar que o indivíduo estaria envolvido em uma atividade (digamos que a meditação, mas pode ser qualquer atividade cotidiana como pegar o metrô, pagar os boletos, escovar os dentes), sem deixar a consciência divagar causando outros sentimentos e emoções para além daquilo que havia sido auto proposto como ação.

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Significa estar presente do processo de distração e trazer a mente de volta ao foco. Isso envolve evitar dois fatores mentais que competem com o sati: torpor e agitação. O torpor grosseiro é a sonolência, enquanto a agitação grosseira é a ruminação, aquela conversa interna ou imaginação que gera um fluxo incessante de conteúdos.


As formas mais sutis desse descompasso são um leve distanciamento ou perda de foco no objeto de atenção, ou mesmo uma fixação exagerada no foco.


Seu público também não poderia ser mais nichado: caucasianos de classe média que não conseguem mais escolher o que pedir no iFood, qual filme iraniano assistir no Hulu ou qual próximo retiro caribenho se inscrever. Mindfulness é a palavra da moda rodada na roleta do bem-estar como a solução para vários dos males da vida moderna, como: estresse, ansiedade, falta de foco, insônia, regados por votos de paz interior, felicidade, prosperidade e sucesso em doses diárias de atenção plena. Essa popularização se dá às custas de um profundo desconhecimento da vasta tradição budista de onde o mindfulness se origina e é apenas um dos mais de 50 estados mentais descritos no Abhidharma (uma vasta compilação de sistematizações dos ensinamentos do Buda nos Sutras, diálogos com alunos). A "mindfulness de supermercado", descontextualizada e pasteurizada, transforma-se em mais um produto nas prateleiras da felicidade: uma solução fugaz e superficial para as angústias do ser contemporâneo, servida em embalagens cada vez mais atraentes e com a promessa de resultados eficazes em um número xis de sessões - são oito, como diz o programa ®.


A essência da prática, sendo ela a conexão com uma tradição milenar ou mesmo a profundidade da experiência perde-se de vista com os valores em doze vezes sem juros. As práticas de mindfulness, em suas versões "fast-food", tornaram um artifício do Mágico de Oz, essa mão invisível atrás das cortinas que, sem realmente endereçar as causas do sofrimento decorrentes dessa suposta "desatenção", "desconexão" ou "falta de foco", individualiza um complexo problema social, sobrecarregando o ser em uma profunda interiorização da inferioridade, que se dá na ordem econômica. A alienação cultural e a desumanização do colonizado, que é forçado a internalizar os valores e a cultura do colonizador. Isso por óbvio é descrito por Fanon, um psiquiatra, filósofo, revolucionário e escritor martinicano cujas obras tiveram grande influência nos estudos pós-coloniais, de forma esplendidamente serena e contundente ao povo preto e branco que diz respeito à todas as nações deturpadas em suas crenças e extirpadas dos seus líderes, surrupiados de suas práticas e tradições após a chegada de um "conquistador". Uma breve observação: não há nessas palavras prévias nem nas seguintes uma primazia no orientalismo - vertente muito difundida no final do século XIX por intelectuais (leia-se herdeiros dos exploradores) europeus. Aqui seguiremos a não-romantização do Budismo, da teosofia e em especial, as ondas new age.


Podemos traçar um paralelo entre a alienação do colonizado e a perda de identidade cultural na "mcdonaldização" da mindfulness. A prática, extraída de seu contexto original e adaptada ao mercado ocidental perde sua autenticidade e se torna um produto cultural diluído, desprovido de sua história e significado, assim como o colonizado é forçado para ser aceito na sociedade conquistada, a mindfulness, em sua versão "mcdonaldizada", é moldada para se encaixar nos valores e expectativas da cultura ocidental. A promessa de bem-estar em um número de sessões descola a materialidade da realidade que esse sujeito retornará.o, a ênfase na individualidade e na produtividade refletem os ideais coloniais que se apropria da prática e a transforma em mais uma ferramenta para o consumo e segregação quando usa essa métrica para a promoção de sensação inferioridade com uma régua econômica.


Esse fenômeno pode ser visto como uma forma de imperialismo cultural, similar ao que ocorre com outras práticas tradicionais, como com a ayahuasca, que no Brasil ao menos sido regulamentada dentro dos padrões da religiões ocidentais, excluindo a citação do conhecimento dos seus verdadeiros conhecedores e transferindo-o para técnicos ocidentais favorecidos por um sistema burocrático.


É fato que Sartre estaria enganado quanto ao Mindfulness: sua essência precede a existência. E o que isso significa na prática?


A rejeição do sofrimento e a busca por um Eu idealizado: McMindfulness e a "zona de não-ser" se encontram na black-friday


Oferecer contraponto crucial à narrativa da chamada Mindfulness já algo de quase um século: Freud, o neurologista austríaco, em "O Mal-estar na Civilização" (1930), argumenta que a busca incessante por prazer e a repressão dos instintos, inerentes à vida em sociedade, geram um desconforto fundamental, uma tensão constante entre o indivíduo e a cultura. A promessa de bem-estar em apenas oito passos da Mindfulness, descolada de um compromisso ético e existencial mais profundo, é mais uma tentativa ineficaz de negar esse mal-estar, de escapar da castração simbólica, da renúncia pulsional que nos constitui como sujeitos. Ao invés de acolher o sofrimento da desatenção como parte da vida, busca-se eliminá-lo a todo custo com artifícios cada vez mais acelerados para uma geração que tem a capacidade de manter o foco por um menor tempo a cada nova gestação, criando a ilusão de um eu idealizado, passível de estar livre de conflitos e emoções negativas, bastando pagar.


Lacan curte isso
Essa peça sempre estará faltando


Fanon (1952), explora a experiência do sujeito que se vê aprisionado em uma "zona de não-ser", um espaço de negação e desumanização. O colonizado, como descrito em sua obra, é alienado de sua própria cultura, de sua história e de sua identidade, sendo forçado a internalizar os valores do colonizador. Na busca por reconhecimento, ele se esforça para se assimilar à cultura dominante, negando sua própria existência e subjetividade. A promessa de paz interior e felicidade pode ser sedutora para aqueles que se sentem alienados em uma sociedade marcada pela competição, pelo individualismo e pela busca incessante por sucesso. Assim como o colonizado busca se assimilar à cultura dominante para escapar da "zona de não-ser", o indivíduo encontra refúgio no que chamaremos a partir de agora no McMindfulness, conceito descrito e explorado em "McMindfulness: How Mindfulness Became the New Capitalist Spirituality" , um livro de 2019 escrito por Ronald E. Purser, professor de Administração na San Francisco State University. A obra oferece uma crítica contundente à crescente popularização da mindfulness e sua incorporação ao mundo corporativo. Para negar o mal-estar, a falta, a inferioridade propulsionada pela discrepância econômica e a incerteza que o constituem, o sujeito conecta-se com práticas do outro lado do mundo para reduzir seus níveis de estresse em um ambiente hostil. O século XX em sua tentativa de sofisticar as relações de poder, pulverizando a instituição da escravidão oriunda da subjugação bélica, unificando as etnias em todos os territórios através do consumo. Todos, nesse modelo "sofisticado" são igualmente consumidores. Será, mesmo?


Enquanto o mindfulness ecoa livremente dentre os corredores da Faria Lima, o que de fato a atenção plena, o foco presente, a atenção centrada, essa suposta consciência tem trazido de contribuição à humanidade? Os gestores estão voltando dos retiros com maior empatia, entendendo as nuances definidas por classes sociais, praticando a alteridade ou estão cada vez mais focados no acúmulo de bens, na maximização do lucro e redução de todos os custos?



A ilusão da completude e a castração simbólica: McMindfulness como anestésico para a falta


Lacan (1966), aprofunda a crítica ao ideal de completude e felicidade, argumentando que o sujeito é constitutivamente marcado pela falta - essa originada na castração simbólica, transformando-se no motor do desejo que nos impulsiona em direção ao outro e ao mundo. O sujeito se vê caindo em inúmeras ilusões de um Eu unificado e harmônico, livre das contradições e da angústia inerentes à condição humana, e a qualquer deslize julgado por instâncias policialescas (o panóptico que-tudo-vê) dentro de nosso corpo, seria possível adquirir a redenção em algumas parcelas no cartão de crédito. Essa é uma das ilusões da busca por um estado idealizado de mindfulness como uma forma de negar a castração simbólica, de negar a própria incompletude que nos define como sujeitos.


O Faria Limer se prepara para cortar o pessoal no final da semana

A "zona de não-ser" leva a uma alienação ainda maior, a uma perda da própria identidade e a uma submissão aos ideais do colonizador. A McMindfulness, nesse contexto, tonar-se um anestésico (não dissociativo, infelizmente) para a falta, uma forma de negar a castração simbólica e de se submeter aos ditames do capitalismo. Ao invés de confrontar a angústia e o mal-estar dessas divagações mentais que tanto atrapalham a produtividade, a eficiência, as metas... Busca-se eliminá-los a todo custo, criando a fantasia viva de um eu completo e adaptado à lógica do mercado comprando algumas horas de foco quando a "cabeça está meio avoada".


A suposta dimensão de "meta-atenção" presente em "sati", que implica em estar consciente do próprio processo de atenção, e como essa dimensão se perde na McMindfulness, que a reduz a um estado passivo de "observação" e inação dos pensamentos para apaziguamento e adaptação humana. A busca por uma "mente vazia", livre de pensamentos e emoções, se distancia do significado original de "sati", que se refere a uma atenção clara e presente, mas não necessariamente vazia.


A sofisticação é tanta que hoje compramos a corda da forca, a sentença e a redenção no mesmo estabelecimento. Žižek argumenta que o que além de produzirmos mercadorias, sujeitos consumidores, produzimos também ideologias e subjetividades, permitindo que se compre uma sensação de perdão ou alívio da responsabilidade por adquirir um item, um curso ou frequentar um espaço.


Apropriação cultural e a "McDonaldização" da espiritualidade


A Mindfulness, como vimos, é um produto da cultura ocidental, que se apropria de práticas e conceitos originários da tradição budista, descontextualizando-os e adaptando-os à lógica do consumo.


Franz Fanon, em "Os Condenados da Terra" (1961), analisa a exploração cultural do colonizado, que se vê privado de sua história, de sua cultura e de sua identidade. O colonizador se apropria dos bens materiais e simbólicos do colonizado, utilizando-os para seu próprio benefício e perpetuando a dominação. De forma análoga, a apropriação cultural da mindfulness pode ser vista como uma forma de exploração, em que a cultura ocidental se beneficia dos conhecimentos e práticas da tradição budista, sem reconhecer seu valor e sua origem. Essa apropriação leva à perpetuação de estereótipos e preconceitos, à distorção dos ensinamentos budistas e à desvalorização da cultura oriental.


A McMindfulness, como vimos ao longo deste texto é um reflexo da sociedade em que vivemos, marcada pelo consumo, pela alienação e pela busca incessante por felicidade. Cabe a cada um de nós questionar essa lógica e buscar práticas autênticas de autoconhecimento e transformação, que nos conectem com nossa história, nossa cultura e nossa subjetividade.


"Deveríamos celebrar o fato de que essa perversão está ajudando as pessoas a se 'autoexplorarem'? Este é o cerne do problema. A internalização do foco para a prática da atenção plena também leva à internalização de outras coisas, desde os requisitos corporativos até as estruturas de dominação na sociedade... enquanto não se presta atenção à responsabilidade cívica." (Purser, 2019, p.)

O verdadeira mindfulness
Monge budista ataca de forma plena e conciente a tropa de choque da policia na Tailândia em novembro de 2022. Podia ser um dos módulos do MBSR Training®

A ênfase na atenção plena, sem a devida consideração aos aspectos éticos e filosóficos presentes nas tradições budistas, transforma a mindfulness em uma ferramenta individualista e descolada de seus objetivos originais de libertação do sofrimento e desenvolvimento da compaixão.



E esse futuro não é cósmico, é o do meu século, do meu país, da minha existência. De modo algum pretendo preparar o mundo que me sucederá. Pertenço irredutivelmente a minha época. (Fanon,1950, p.29)


-Vai finalizar com uma citação?

-Brigue com o editor

Referências:

Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.

Conze, E. (1975). The large sutra on perfect wisdom: With the divisions of the Abhisamayalankara. University of California Press.

Deleuze, G. (1990). Postscript on the societies of control. In L. Critchley (Ed.), The Deleuze Reader (pp. 143-153). Blackwell.

Dreyfus, G. B. J. (2003). The sound of two hands clapping: The education of a Tibetan Buddhist monk. University of California Press

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (A. C. Assi, Trad.). Ubu Editora. (Obra original publicada em 1952).

Fanon, F. (2021). Os condenados da terra. (V. Coutinho, Trad.). Civilização Brasileira. (Obra original publicada em 1961).

Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização. (P. C. Souza, Trad.). Companhia das Letras. (Obra original publicada em 1930). Gethin, R. (2011). Sayings of the Buddha: New translations from the Pali Nikayas.  Oxford University Press.

Han, B.-C. (2010). A sociedade do cansaço. (E. B. Soares, Trad.). Vozes.

Hooks, B. (1994). Teaching to transgress: Education as the practice of freedom. Routledge.

Kabat-Zinn, J. (2018). Atenção plena para iniciantes: como viver o presente momento. (M. Santarrita, Trad.). Sextante. (Obra original publicada em 1990).

Lacan, J. (2008). Escritos. (V. Ribeiro, Trad.). Jorge Zahar Ed. (Obra original publicada em 1966).

Lopez Jr., D. S. (Ed.). (2005). Curating the Buddha: The study of Buddhism under colonialism. University of Chicago Press.

Pinheiro, E. (Padma Dorje). (2014, 05 de dezembro). McMindfulness: meditação com marca registrada. Buda Virtual. https://www.budavirtual.com.br/mcmindfulness-meditacao-com-marca-registrada/

Purser, R. E. (2019). McMindfulness: How mindfulness became the new capitalist spirituality. Repeater Books.

Shibayama, Z. (1974). Zen comments on the Mumonkan.  Harper & Row.

Žižek, S. (2008). Violence. Profile Books.

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1 Comment

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Odilio R
há 5 dias
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Excelente texto, e em um momento bem oportuno!

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